quarta-feira, 23 de abril de 2025

Incêndio - Poesia




Editado em Braga, Fevereiro de 2021 pela Poética Grupo Editorial

Nas questões dos inícios e dos fins assinalados
Serão sempre belas as árvores do entendimento
Serão sempre belas as verdades das sinceras antecipadas
Como é um oximoro a crença num qualquer deus
(os pássaros a descer nas escantearias
como chagas na abertura)
Nascer no local apaziguado
Morrer nos horizontes de clareza
(morrer ao lado do ser amado)
Filigrana autenticidade luz
Para onde a noite dos bálsamos?
Para onde a inocência da imperfeição?
Nas questões dos inícios e dos fins assinalados
O telhado a portada a enxada
O coração a mente a colina
O sonho ou o outono a resina
Uma folha a ausência esta escada
Palavras soltas
O adro na neblina

Um intenso adeus

Direitos de Autor: Cecília Barreira 

__________________§_______________


Críticas: 

Ernesto Rodrigues:

"Incêndio", de Cecília Barreira (Braga, Poética Edições, 2021), faúlha em variações sobre um corpo, melhor dizendo, a sua ausência. O modo de dizer esta falta assenta no que a paixão tem de redundante, num esforço de apreensão do obsessivo e enunciado TU (que se assume verso, p. 26-27), a qual passa por soluções de reprodução: anáforas, monorrima, idênticas formas verbais, jogo de tónicas e outras recorrências, incluindo glosa ou paráfrase de versos conhecidos, vindos de familiares deste ofício aqui e aliados. Mas, descontados são intermediários de linhagística literária ou consanguinidade (é o caso do derradeiro tu, dirigido ao Pai), o que temos é esse impressionante «sempre tu» (p. 5) dentro d'«aquela minha forma estranha de te amar» (p. 14), assumindo um desespero prometido (p. 11). O argumento, intensamente desenvolvido, pode estar nestes versos: «Cresceste dentro de mim / Em mim te ausentaste» (p. 15). 
É um pico, uma ferida agora mais intensa já entrevista na análise de Cecília Barreira a Gomes Leal, em "Sete Faces Ocultas da Cultura Portuguesa (de Gil Vicente a Pascoaes)" (1991), ao concluir que «a Dor sagra a vida». No ano seguinte, os ciclos centrais de "A Sul da Memória" não só relacionavam uma dor emergindo e «o teu / corpo», como anteciparam aquele argumento: «Uma única morte me apetece. A da minha / viagem dentro da tua ausência. […]» Arde, assim, em fogo lento, essa remissiva para amada ausente, que é, simultaneamente, uma catártica remissão em lírica subindo a grandes alturas.


__________________________
João Rasteiro nas "Revistas Incomodidades"

“Incêndio” de Cecília Barreira é uma obra que irrompe e alastra sob a toponímia de uma “cidade branca” onde o lirismo, por vezes torrencial, respira “os tetos que em cada um perduram”, assentes num traço de melancolia intrincada, em que o verbo respira e sufoca na incompletude de um “voo livre” que, apesar da perseverança, nunca conseguirá vislumbrar o olfato do real na  (13) “cidade branca

É um traço poético que brota “das eternas dissonâncias” dos sonhos e da crença, um salto mortal nas “horas enredadas dos abrigos e dos estilhaços”

 Poder-se-á afirmar que estamos perante uma poesia que em grande parte, nessa incompletude essencial da criação, matéria vislumbrada no ato sagrado da crença, sempre jorrando e brilhando “nos incêndios de amígdalas” de um oxímero divino, como o poeta declara no poema “Prometeu”:

   “ Estas vértebras / Os ossos numa pia / O pus (possibilidade de leitura dupla) / A mão que já não cheirará mais o perfume que é o teu ” (o dele, o nosso, o da poeta…).  

 

Ao longo de(o) “Incêndio”, alguns dos temas que de alguma forma se colaram ao corpo (poética e carnal) da autora desde sempre, quer seja na poesia, na prosa ou até ensaio, como o frequente questionamento do absurdo mundo (deste nosso mundo atual…), a sexualidade, em sua amplitude exponencial (heterossexual, homossexual e bissexual), os complexos e relacionamentos tóxicos (amorosos, de amizade e sociais), ou seja, “os mundos” sob “a densidade dos que acenam as lamas” em falas paralelamente onde muitos se escondem e/ou perdem a liberdade e o seu “peso” e, ainda e apesar de tudo, a viva crença na humanidade e, nomeadamente, na POESIA. Pois, como afiança no poema “Acendo uma desordem”:

 

    “ Abro as persianas / O dia oblongo acorda devagar / Acendo uma desordem ” – e desperta e reergue-se, resfolga e respira “deslizando na folhagem”: vive!

 

Ou seja, na desordem (da poesia, da palavra, do centro sísmico da poiésis…) há ainda uma visão de crenças na selva (a natural, mas sobretudo, a humana) deste mundo atual, desta “casa” em que hoje sobrevivemos (por combate ou indolência), já que a criação se faz inesgotável e insaciável  (20) e um ovo estrelado por aquela gaveta / onde cuspimos a dignidade nossa amarela ” fervilha sísmico.   

 

Para o poeta, “Incêndio” será o fogo que alimenta a desordem da linguagem primordial, uma vez que o poema (a poesia…) será o lugar onde a linguagem e a fala se podem transformar, se podem metamorfosear. Aquele lugar onde um certo caos ordenado se poderá constituir o espanto, fogo divino,  (11) a orquestra da língua o ventre do avesso ”. Se assim não for, nada valerá a crença nos silêncios bruscos do mundo, (11) qual Prometeu / com a escarpa rente de quem nunca creu ”.   

 

Dito isto, há que exorcizar e expor um dos pontos fulcrais da poesia deste livro. Sob o aparente espelho em que aflora uma voz lírica e melancólica, por vezes em sua delirante torrencialidade, divisa-se uma explícita problematização da própria poesia enquanto linguagem incrédula, mas concomitantemente crédula, “nesta” infinita e desconhecida viagem (metafísica e real…) em que, sob o benefício de um deus (espiritual ou verbal) ou deuses, percorremos, sempre, sob o peso profundo da nossa solidão. Da sitiada solidão das “ cinzas outonos do verão da nossa identidade ”.

Concluindo, e como já referi, sob as nuvens e/ou manto dessa “lírica melancólica”, vislumbra-se uma concepção de verbo externo para dentro, numa derivação da palavra, da fala, da poesia, ambicionando ainda e sempre, ser um corpo orgânico e físico em seu hálito seminal. O próprio sentido ilativo e conclusivo de muitos dos poemas da obra apresenta-se como um mergulho catártico (da poeta, mas essencialmente da (sua) fala primordial) da POESIA.

É, pois, notória uma ambição-testemunho nestes poemas, no sentido de problematizar e simultaneamente celebrar a poesia entre os dois centros que a podem delimitar: o amor e/ou crença em seu sopro e a sua problematização (por vezes próxima do abjeccionismo) a partir da sua impossibilidade, que, todavia, não deixa de ser imbuída de uma embriaguez exponencial.

Diria, neste corpo indiferente ao caos ordenado do fogo que o saúda, esta é a pura e ébria silenciosa arte de Sífiso:  (112) Um imenso plural / Uma interrogação letal ”. 

https://youtu.be/kYJt-OMlTtA?si=eF693a_ISPeE6nwv



A Bomba - Poesia


 Editora - Glaciar, Março de 2024

A Catavento

Eras imemorial e um corpo de latitudes e loucura
Bebiam-te os homens
Entornavam-se
Rasgavam-se
Lancinados e apoteóticos
O deslumbre
Uma manutenção
As estradas o alcatrão
Tudo jazia perante ti
Tudo
Até as virtudes se desfeneciam


Direitos de autor: Cecília Barreira 

Este foi o seu último livro, cáustico e por vezes cómico, onde sobressai a desilusão e acidez. 

No primeiro poema referencia a Madrinha, uma pessoa de extrema importância na vida dela.

O seu bairro de Benfica e o Natal, aqui feliz!


____________Cecília Barreira deixou-nos no dia 12 de Setembro de 2024, e gostaria de ser lembrada como a Poeta de Lisboa.


"(...) E assim morre feliz

e assim não sofre

Lisboa a minha amada

É no teu ventre que eu quero ser lembrada"

( Poema: A minha amada Lisboa e a poesia)



Onde os uivos se tingem - Poesia

  


Poética, Grupo Editorial - Julho 2023


JÁ NADA FAZ SENTIDO 

Perguntaram-me sobre a verdade e eu só soube dizer,

Tal como diz a Poeta, que não amei ninguém depois de ti

Que nunca me restabeleci das ausências dos teus braços

Que nunca mais me perdi em forros ou em murmúrios

Que o meu amor é um antes e um depois de te encontrar

Tal início tal fim tal lento acabar

Perguntaram-me sobre a verdade e eu só soube dizer

Que as minhas linhas da mão te continham

Que os sonhos ou eram contigo 

Bem como as nuvens os pássaros as insônias 

E tu eras cúmplice da passagem da noite do dia das horas

Perguntaram-me sobre a verdade e eu só soube dizer

Que sem ti já nada faz sentido 

Nem as calçadas nem as demoras nem os perigos

Nem as cores nem este cheiro a alfazema do meu abrigo.


Direitos de autor: Cecília Barreira 


Administradora do blog: Sara Rocha Cardoso

Partíssemos - Poesia

 



Editora Glaciar - 2022


Sou mato
Aprendi a voar nas tessituras de estômagos
 o medo
Aprendi o sacerdócio das bermas
(Os condenados nada sabem de trelas)
Não uso faróis
Sou olival
(Amarrotada entre prédios)
Aprendi o instalar e o infinito
De um nascer do sol
Íntimo sem fito
(Os condenados nada sabem de trelas)
Sou mato


Direitos de Autor: Cecília Barreira 


                         ლ⁠(⁠´⁠ ⁠❥⁠ ⁠`⁠ლ⁠)



Pudesse eu a tela dos teus olhos têmporas de mãos dissoluções cabelos

esparsos

Pudesse eu sentir o hálito em relâmpagos

O teu

Pudesse eu habitar os mapas dos indizíveis

Pudesse eu passar-me na doçura de uma nuvem

A tua

E esticar fragmentos de braços recifes unhas

Pudesse eu recitar as alegorias no terrunho

Brevidade pão almíscar anjo

E não teria emoção que não se confundisse com o sobressalto

O teu

E não teria o dia e a destruição 

E não haveria mestres

E não teria a morte e a contingência

E só teria ciclones no azul

O teu


|Cecília Barreira, "Partíssemos" (2022), Ed. Gele

Administradora do Blog: Sara Rocha Cardoso 


Direitos de autor: Cecília Barreira

Não me Amasses - Poesia


Editora Glaciar - 2021


Adeus, meu amor selvagem e gelado
Adeus, tanto que te amei nas escarpas e nas veredas
Adeus, meu amor das lembranças da interdição e da ausência 
Adeus ao quanto te amei
Foi num final de primavera que te prenunciei
Os corpos enlaçaram-se no abismo
Mas o mundo separou-nos
Mas os céus irradiavam outros paladares
Adeus, meu amor selvagem e gelado
Tanto que te amei nas escarpas e nas veredas
Com os lábios em fuga e os braços terminais
Adeus, pálida refração das experiências únicas
Reside dentro de mim no porão longo da memória.

Direitos de autor: Cecília Barreira

Administradora do blog : Sara Rocha Cardoso

EQUINÓCIO DA PAIXÃO

Este pequeno livro de 1990, muito raro (o segundo de poesia de Cecília Barreira, o primeiro foi a Lua Lenta de 1984), é de uma beleza sublim...