“ Estas vértebras / Os ossos numa pia / O pus (possibilidade de leitura dupla) / A mão que já não cheirará mais o perfume que é o teu ” (o dele, o nosso, o da poeta…).
Ao longo de(o) “Incêndio”, alguns dos temas que de alguma forma se colaram ao corpo (poética e carnal) da autora desde sempre, quer seja na poesia, na prosa ou até ensaio, como o frequente questionamento do absurdo mundo (deste nosso mundo atual…), a sexualidade, em sua amplitude exponencial (heterossexual, homossexual e bissexual), os complexos e relacionamentos tóxicos (amorosos, de amizade e sociais), ou seja, “os mundos” sob “a densidade dos que acenam as lamas” em falas paralelamente onde muitos se escondem e/ou perdem a liberdade e o seu “peso” e, ainda e apesar de tudo, a viva crença na humanidade e, nomeadamente, na POESIA. Pois, como afiança no poema “Acendo uma desordem”:
“ Abro as persianas / O dia oblongo acorda devagar / Acendo uma desordem ” – e desperta e reergue-se, resfolga e respira “deslizando na folhagem”: vive!
Ou seja, na desordem (da poesia, da palavra, do centro sísmico da poiésis…) há ainda uma visão de crenças na selva (a natural, mas sobretudo, a humana) deste mundo atual, desta “casa” em que hoje sobrevivemos (por combate ou indolência), já que a criação se faz inesgotável e insaciável (20) “ e um ovo estrelado por aquela gaveta / onde cuspimos a dignidade nossa amarela ” fervilha sísmico.
Para o poeta, “Incêndio” será o fogo que alimenta a desordem da linguagem primordial, uma vez que o poema (a poesia…) será o lugar onde a linguagem e a fala se podem transformar, se podem metamorfosear. Aquele lugar onde um certo caos ordenado se poderá constituir o espanto, fogo divino, (11) “ a orquestra da língua o ventre do avesso ”. Se assim não for, nada valerá a crença nos silêncios bruscos do mundo, (11) “ qual Prometeu / com a escarpa rente de quem nunca creu ”.
Dito isto, há que exorcizar e expor um dos pontos fulcrais da poesia deste livro. Sob o aparente espelho em que aflora uma voz lírica e melancólica, por vezes em sua delirante torrencialidade, divisa-se uma explícita problematização da própria poesia enquanto linguagem incrédula, mas concomitantemente crédula, “nesta” infinita e desconhecida viagem (metafísica e real…) em que, sob o benefício de um deus (espiritual ou verbal) ou deuses, percorremos, sempre, sob o peso profundo da nossa solidão. Da sitiada solidão das “ cinzas outonos do verão da nossa identidade ”.
Concluindo, e como já referi, sob as nuvens e/ou manto dessa “lírica melancólica”, vislumbra-se uma concepção de verbo externo para dentro, numa derivação da palavra, da fala, da poesia, ambicionando ainda e sempre, ser um corpo orgânico e físico em seu hálito seminal. O próprio sentido ilativo e conclusivo de muitos dos poemas da obra apresenta-se como um mergulho catártico (da poeta, mas essencialmente da (sua) fala primordial) da POESIA.
É, pois, notória uma ambição-testemunho nestes poemas, no sentido de problematizar e simultaneamente celebrar a poesia entre os dois centros que a podem delimitar: o amor e/ou crença em seu sopro e a sua problematização (por vezes próxima do abjeccionismo) a partir da sua impossibilidade, que, todavia, não deixa de ser imbuída de uma embriaguez exponencial.
Diria, neste corpo indiferente ao caos ordenado do fogo que o saúda, esta é a pura e ébria silenciosa arte de Sífiso: (112) “ Um imenso plural / Uma interrogação letal ”.